07 junho 2015

Regressos




Objectos que regressam, regatados do passado. 
Brilhantes e inspiradores, plenos de luz e histórias. 
Tesouros arrancados ao esquecimento 
que ganham nova vida 
e nos reconduzem a pedaços de memórias, 
presas por filigrana de prata. 

11 setembro 2012



Por trás da rosa se esconde o viajante do tempo remoto.
Por trás do tempo viaja a remota rosa escondida.
Dentro da bússola canta o Norte do horizonte infinito.
Dentro do infinito cabem os grãos de areia furtiva.


04 janeiro 2012

Hommage ao Deus Italiano


Dizia noutra vida que gostava de voltar a ensinar. Mas não tinha tempo. Tão pouco paciência. Sabia que no seu sangue corria a prestigiosa virtude da genialidade. Fosse que matéria fosse. Sabia que “aquilo que melhor sabes é o que mais precisas de aprender”. Como se de uma fonte inesgotável se tratasse. Quanto mais se bebe, mais generosa brota a corrente. Sabia que devia isso ao seu ser e à humanidade que pronta se achasse a empreender viagens de pedagogia e conhecimento, a conhecer a natureza hipostática do todo. Sabia que tinha de esventrar a ciência e reinventar arquétipos, explorar padrões, estripar paradoxos, sondar protótipos. Mas não se conseguia violentar. A inanimada volúpia da retracção não deixava que a candeia alumiasse mais além. E assim esperou por outra vida, por uma encarnação mais corajosa e dinâmica em que empunhasse a luminária contumaz sem dúvidas ou restrições. Enquanto esperava sorveria ainda mais conhecimento, limaria arestas mais mordazes, libaria erudição por todos os poros para um dia rebentar em puro poder esclarecedor. E assim foi. Um dia reencarnou em Itália e explodiu como uma supernova.

08 dezembro 2011

Cystal Reports


Observatório: Report II



Parece que afinal a profecia Maia que anunciava o fim do Mundo para Dezembro de 2012 não foi bem interpretada. Parece que afinal "Os maias nunca disseram que haveria uma grande tragédia ou o fim do mundo em 2012." O fim de um ciclo, sim. O fim do mundo não. Foi desfeito o engano. Foi desmascarado o embuste. Os media veicularam a verdade agora revelada. Pronto, agora já toda a gente dorme descansada.

Por outro lado, parece que foi descoberto um novo planeta habitável a 600 anos-luz da Terra. E uma onda de renovada esperança trina pelo sistema nervoso humano a cada vez que se fala no assunto. Com esta descoberta, sobe para três o número de planetas fora do sistema solar em zona orbital habitável. O Keppler 22-b é, de facto, um novo mundo muito prometedor, felizmente intangível às humanas manápulas. Ainda não acabamos de destruir este planeta, já temos ganas de passar para outro, virgem, limpo, saudável e atestado de recursos para explorar.

E a humanidade continua a olhar para o seu umbigo e esfrega as mãos de contente.

07 outubro 2011

Querida Berlim



Fui ao teu encontro de expectativas vazias, mãos nos bolsos e alma de viajante.

Voltei cheia de ti. Olhos, ossos, entranhas, coração e mente.

Sou tua.

11 agosto 2011

O Legado de Eva





Oh iníqua fonte de sangue
que com ganas ancestrais
vilipendias e aviltas a condição feminina.

Se Eva soubesse o legado que deixaria às suas filhas ao mordiscar a sacra maçã
teria trincado antes a serpente e casado com Lilith.

29 julho 2011

Crystal Reports



Observatório: Report I

No tempo em que os OVNIs voavam pelos céus era tudo muito mais simples. Os dogmas eram a filosofia dos livres-pensadores e os homens é que andavam atrás das mulheres. O aquecimento global anunciava o apocalipse iminente e a banca engordava, filha bastarda mas favorita do capitalismo. As guerras eram transmitidas live no telejornal como se de filmes de acção com mau argumento se tratasse. As drogas lavravam, draconianas, pelas comunidades jovens. As ervas daninhas da oligarquia política tornavam-se frondosas árvores infestantes. A pornografia vulgarizou-se ao ponto de se tornar desinteressante. A obesidade mórbida tornou-se num padrão de normalidade. Os chips disseminaram-se e integraram a humana carne. Os pulmões começavam a conseguir respirar monóxido de carbono. A humanidade sabia que ia morrer e, não tendo nada a perder, vivia cada dia como se fosse o último. Tudo estava no seu devido lugar e o curso da história  fluía ao seu ritmo normal de insanidade e exício.

Agora há esperança. Tudo está perdido.

19 julho 2011

Férias


Respirar fundo a existência.
Abrandar o ritmo cardíaco e acertar o relógio pela natureza.
Viver como se fosse para sempre tarde de Verão.
Inspirar a indolência.
Soltar as obrigações ao vento e perde-las de vista.
Triturar os horários.
Lamber o sal da pele queimada do sol.
Comer, beber, dormir, comer, beber, dormir.
Passear, nadar, divagar, conversar ao sabor infinito do tempo.
Ter tempo para tudo e não fazer nada.
Saborear a insónia e/ou madrugar com convicção.
Voar com os olhos nas asas dos pássaros.
Estado de consciência mínima.
Fluir.

26 abril 2011

Mini-Meditação-Pós-Almoço-Antes-de-Voltar-ao-Trabalho


Dou-me ao luxo de um pensamento contemplativo.

Um apenas, para não exagerar.
Livro-me de tudo o que me oprime e reprime. Do que me entristece.
Depois deste sinuoso exercício respiro como mandam os sadhus.
Abro os olhos e espelho-me no universo, já noutra dimensão – a da contemplação.
Mudo de foco sem me distrair, remexo no fundo do bolso, procuro um grão de essência.
Quando o encontro deito-o ao vento.
Tem um brilho bonito, nacarado, multicolor, enquanto voa para longe ao sabor da brisa.
Pode ser que assente em terra fértil e que floresça.
No fundo do meu bolso, esquecido, não estava definitivamente a fazer nada.

[ Fechar o círculo e voltar à realidade ]

28 janeiro 2011

A Alcateia



Tive em tempos uma Alcateia, a mais bela de todas.
Fazer parte dela era tão natural como fazer parte deste mundo quando se nasce.
Corriamos de Alma nua pela nossa floresta agreste.
Selvagens, sedentos, famintos e sujos.
Eramos um só lobo.

14 dezembro 2010

As nuvens que dançam


Seria capaz de passar horas a olhar para as nuvens reflectidas nos vidros velhos do edifício antigo. O vento sopra meigo, fa-las avançar lânguidas e preguiçosas, parecem dançar devagarinho. Quando passam num vidro partido desaparecem. Mas voltam a aparecer no seguinte como num caleidoscópio. Quando acabam de passar no último vidro, já vem a seguinte no início da sequência. Quantos milhões de nuvens já teram sido reflectidas naqueles vidros? Quantas já dançaram neles? Pelo sim, pelo não, meti um bocadinho de vidro partido no bolso, um caquinho pequeno, mas carregadinho de nuvens dançantes.

09 novembro 2010

O Galvanoplasta


Manipulas o éter vital e brincas com as teias de prata.
Saltitas de mundo em mundo e engoles oxigénio puro às golfadas, exultante.
Despedaças a realidade com as garras fortes e afiadas, e sorves elegantemente por uma palhinha pequenos goles da poeira cósmica de que somos feitos.

Tens consciência que o tempo urge, mas não te preocupas com isso.
Moldas a existência a teu bel-prazer, sem nunca te esqueceres do sangue.
Conheces as ilusões da humanidade, mas perdoas-lhe e não te impacientas.
Anseias por tempestades: vampirizas-lhes a energia, a fúria e a beleza.

Abres as asas aos ventos ciclónicos.
Dormes em pele sobre carvões acesos.
Róis a casca da planta-veneno.
Adentras os desertos mais inóspitos sem uma pinga de água no bolso.

Ris-te da morte e da vida.
E adormeces, ao fim do dia, no cimo da tua montanha.

Sem manta, sem mochila, sem fogueira.

09 agosto 2010

O Psiconauta


O Psiconauta é o caminheiro da mente.
É o senhor absoluto do seu caminho.
A solidão é a sua candeia e o infinito o seu estandarte.
Solar ou ctónico, explora a infinitude dos mundos mentais sem restrições ou medos.
Mergulha no vulcão em erupção e testemunha mil crepúsculos nos antípodas do Universo. Dissolve-se no astral, uno com o Cosmos.
Almoça com os Lamas e bebe o chá da tarde com os Sadhus.
Não sabe o que são fronteiras nem obstáculos.
Não distingue a morte da vida.
Fala a linguagem do Eterno.
Flui, apenas.

03 agosto 2010

Portais


Estão em toda a parte.
Arquitectónicos, místicos, emocionais, mentais, espirituais, cibernéticos, intelectuais,
físicos, simbólicos, visuais, temporais, mágicos, dimensionais, sexuais, quotidianos,
universais, ilusórios ou reais, ciclópicos ou ínfimos, visíveis ou mais discretos,
humanos ou divinos, banais ou epifânicos.
Basta um olhar mais observador.
Qualquer passeio pelas imediações,
da simples porta de casa às imponentes obras maçónicas,
de uma breve passagem de um livro a uma revelação de consciência,
de uma tempestade cerebral a uma mudança de atitude,
de uma ruína humana a um passo da humanidade,
de um clic na internet a um estado de conhecimento semi akáshico,
de uma violação brutal a um parto sublime,
de um devaneio místico a uma manifestação fenomenológica,
de uma viagem espacial a uma viagem astral,
do ritual mais sombrio ao mais iluminado,
da conclusão escolástica mais sóbria ao êxtase consciente induzido por toxicidade.
Há-os por todo o lado.
Quão insonsa seria a vida humana sem eles.

23 junho 2010

A Mosca Temporal


A mosca respirou fundo. Havia muito anos que lia e pensava filosofia. Tinha tido a sorte de ser agraciada como Mosca Temporal por Chronos e, portanto, não estava sujeita à curta vida das suas congéneres. Debruçava-se ultimamente sobre o Dualismo, sistema filosófico Descartiano, que consiste na doutrina que admite, como explicação primeira do mundo e da vida, a existência de dois princípios, de duas substâncias ou duas realidades irredutíveis entre si, inconciliáveis, incapazes de síntese final ou de recíproca subordinação. Pensava de si para consigo, saboreando os conceitos. E da superfície do espelho onde sempre pousava quando queria pensar, transportou-se até Mileto para experienciar a visualização dos discursos do mestre Anaximandro sobre cosmologia e evolucionismo. E deixou-se ficar a flutuar em estado de graça do Conhecimento, com a mente a apreender, assimilar e concluir. De repente ouviu a voz titânica de Chronos. Num nano segundo voltou à superfície fria do seu espelho favorito. Era hora! E Chronos não suportava atrasos.

21 junho 2010

Midsummer


Solstício de verão, eixos planetários que se inclinam, achegamentos e interacções das orbes magníficas, vénias cósmicas cujos arcos são causa de transmutação, metamorfose,
epigénese e evolução.

É o dia com mais Luz do ano inteiro. Focar coragem, energia e saúde. Noite de celebrar, esquecer a Sombra, invocar a Luz que brilhará intensa nos próximos meses.

Dança-se à volta da fogueira toda a noite. Come-se e bebe-se em honra do Sol e da Terra, magnos deuses todos poderosos.
Aproveitar para recarregar baterias, sejam elas físicas, místicas ou intelectuais.

Sacodem-se as trevas das costas, dança-se, ri-se e celebra-se a união cósmica cíclica que ainda nos permite viver como filhos (pródigos) destes dois seres celestes.
*

24 março 2010

Foto Grafia ou Desenhar com Luz


Do grego, fós (φως) grafé (γραφη), que significa desenhar com luz.

Desde a invenção da câmara obscura ao advento da tecnologia digital, a viagem através da imagem capturada tem sido incomensuravelmente longa e labiríntica. Técnicas, formatos, ramos, disciplinas, movimentos e história em geral. Mundos a desbravar. Mas tudo isso faz parte do domínio do estudo e aperfeiçoamento. As minhas questões são outras.

Afigurasse-me interessante, por exemplo, pensar que capturar imagens é roubar pedaços de realidade presente. Apoderamo-nos deles e passam a ser nossos, congelados, eternos e imperecíveis, perfeitos. Permanecem imortais, perpétuos, imunes à passagem do tempo. Mesmo uma velha fotografia com 40 anos, amarelecida, comida do peixe-prata, mortiça e ténue, aprisiona um determinado momento que ficou para sempre encarcerado entre o papel de suporte e os químicos da revelação. Algures no momento real, há uma fracção de segundo que é furtada, como se se retirasse uma pequena peça de um puzzle temporal e existencial. No caso de uma natureza morta pouca diferença fará. Mas os índios têm uma ideia diferente acerca das imagens capturadas de pessoas. Acreditam que lhes roubam um pedaço da Alma.

Saquear pedaços de existência, de vidas, de emoções, de actos e acontecimentos é como ter um cronómetro que pára o tempo. De certa forma, é brincar a ser-se Deus. E a brincadeira pode ir bem mais longe, quando se constroem mundos apenas e só com o propósito de os capturar. Nano-segundos de fragmentos do presente, que o são para sempre, presente. Todos conhecemos o poder que determinadas imagens têm de nos transportar de imediato ao momento x ou y. Materializa-se ali, presente amaldiçoadamente eterno.

Tudo somado desde o início da história fotográfica, são eóns de fracções existênciais gatunadas à má fila por todos quantos “desenham com luz”. Colecções colossais de pedaços de emoções e acções, porções de almas, peças de vidas, espólios gigantescos de instantes usurpados ao fio do Tempo.

Sim, desenhar com luz é um conceito muito belo.
Mas tem as suas questões.

12 janeiro 2010

O Insecto Seco



O insecto seco gostava de voar pela casa. Esperava que a calma da manhã trouxesse o silêncio para sair da caixinha de fósforos onde estava guardado e voar livre. O seu sítio favorito era a prateleira dos livros de filosofia e o pontinho azul da televisão que ficava aceso quando desligavam o aparelho. Gostava de se pôr em frente dele para ficar azul e fingir que era um escaravelho egípcio. Sabia que não podia deixar marcas das suas escapadelas clandestinas e por isso apagava as minúsculas pegadas que deixava no pó dos móveis com as asas. Sabia também que se fosse à cozinha podia sempre encontrar migalhas de pão duro no fundo do cesto, as suas favoritas. E ali ficava feliz, a rata-las, enquanto pensava que afortunado era em ter morrido naquela casa e em se ter tornado num insecto de estimação, ainda que involuntariamente, ainda que morto. Protegido do apodrecimento, poderia viver ali para sempre. E rodopiava feliz, a cantarolar. Visitava a sua amada, uma borboleta de plástico rosa com mil tons nacarados nas asas, a mais bela e perfeita de todas as criaturas. Depois ía até às janelas e olhava demoradamente o mundo lá fora. Via os temíveis e vorazes pássaros a perseguirem os da sua condição. Via os humanos que iam e vinham nas suas vidas atarefadas, dentro das suas naves ou a pé. Observava outros bichos num frenesim de actividades interessantes. Por vezes tinha a sorte de haver pela casa um livro aberto esquecido. Aí deleitava-se a ler as coisas mais extraordinárias, caminhando pelas linhas com as suas patinhas delicadas. Sabia que tinha de ter cuidado com as horas e já conhecia o relógio e a sua utilidade. Ao fim da tarde, dava um último volteio rodopiante, um último voo rasante aos candeeiros, um último beijo apaixonado à sua borboleta, e um último olhar à casa. A sua casa! Sorria, ditoso, e voltava a meter-se na sua caixinha, tendo o cuidado de se colocar na mesma posição em que tinha sido deixado da última vez, não fosse o ser feminino que o guardara precisar dele essa noite para o fotografar e achar estranho estar noutra posição. Sabia que era exagero, mas nunca se sabe. E era tão feliz ali como nunca fora. Não queria arriscar. Era um preço justo a pagar pela isofismável perfeição de vida que tinha.

28 dezembro 2009

“Tu que adentras esta porta abandona toda a esperança.” disse o poeta.



Adentrar o novo ano sem esperança, para que as expectativas não devorem o que está para vir em gula e devassidão absolutas?

Aceitar as vindouras experiências e consequências como kármicas?

Deixar nas mãos dos Senhores do Destino o traçado e a directriz, a meta e o merecimento?

Ou ser Deus do próprio Universo e ditar o que está para vir ao milímetro?

Ter uma candeia, de chama parca, tímida mas mística, a conduzir um trilho na escuridão da floresta existencial?

Ou empunhar uma tocha orgulhosa de calor e luz a afirmar um Caminho que é, em si mesmo, infalível e exequível?

Traçar planos meticulosos a cumprir?

Ou fluir pela espiral com as asas da Alma livres ao vento?

Viver, sobreviver, subviver?

Ser, não-ser?



05 dezembro 2009

Degustação



Portais ciclópicos,
mundos vastíssimos,
desertos infindos,
estepes geladas,
escadarias imponentes,
espaços cósmicos de vácuo,
orbes celestes incandescentes,
… grão de areia.

“To see a World in a Grain of Sand,
And Heaven in a Wild Flower,
Hold Infinity in the palm of your hand
And Eternity in an hour.”


William Blake
Fragmento de “Auguries of Innocence”

11 novembro 2009

Limpeza Sazonal


Despoja-te das tuas estéreis vaidades, da improdutiva prosápia, das áridas certezas e dos aprisionantes bens.

Vives melhor.

Palavra da Salvação.

17 outubro 2009

Alquimia da Alma




"Anda vá, digere-te a ti mesma se fores capaz!" disse a voz.

"Sabes bem o que custa, por isso desafio-te. A vontade humana é limitada e os labirintos em que se perde, gigantescos. Por isso, vá, mostra-me do que és capaz e digere-te, na íntegra, como se de um repasto fabuloso se tratasse!"


A Alma teve vontade de rir, não fora a gravidade da situação. Tentou mexer-se e sentiu o peso das correntes que a agrilhoavam. Eram poderosas e enferrujadas. Podia encolher-se a um canto e esperar que fosse apenas um pesadelo ou tentar sair daquela aresta afiada, por si criada, da existência.

Avaliou e concluiu.

Era necessário passar de nível. Se se tinha autoproposto, agora tinha de conseguir.


Com os dentes afiados por anteriores batalhas rasgou o pulso e sorveu o próprio sangue. Sorveu, sorveu e sorveu com gula e volúpia. Sempre gostara do sabor do seu sangue, não era sacrifício nenhum.

Com um caco, de certeza deixado ali para o efeito, começou a rasgar a barriga até poder meter a mão na teia das entranhas. Não havia dor uma vez que se encontrava no mundo mental e tudo eram projecções. Retirou um emaranhado desconhecido e sangrento de peças orgânicas, moles e quentes. Agora sim, começava a provação.

Fechou os olhos.

Meteu-as à boca.

A digestão começava.

Seria isto a Alquimia da Alma?

01 outubro 2009

O Escondido


Espreitou. Ajeitou o corpo. E ficou a observar. Gostava de o fazer desde que se conhecia como ser vivo. Horas e horas imóvel, estático, a respiração reduzida ao mínimo, os músculos em pedra, a mente focada em tudo o que se passava. Colhia dados, bebia experiência, capturava momentos. Descobriu o seu esconderijo por acaso. Perseguia, a brincar, um ser menor e imaginário e deu com aquele sítio perfeito. Era irrepreensível. Fora feito à sua medida, não tinha dúvidas. O mundo passava à frente dos seus olhos, alheio à sua indetectável presença. Nunca o daria a conhecer. Seria sempre o seu santuário precioso. Era como uma lente que ampliava, pela simples observação, qualquer movimento fortuito, qualquer brisa de acção, o mais leve e ténue acontecimento. Presenciava horrores e maravilhas, tormentos e prodígios, assombros e enlevos. O deslumbramento e o vício, vorazes, eram cada vez mais fortes. Nunca sucumbiria nem abdicaria dele. Era o seu cantinho inestimável e magnífico. Tinha um, e um apenas, desconforto menor: de vez em quando a velhota lembrava-se de regar o jardim ...

29 setembro 2009

Et tu, Brutus?

Elevam-se aos céus os olhos pedintes.
Clamam as mãos por pão incorpóreo.
Era uma vez a aventura humana no vasto universo de um grão de areia.
Era uma vez uma gota de vida que se tornou omnisciente.

20 agosto 2009

Plasma Solar


Invoca o Sol e o Fogo, porque é tempo de acordares do longo sono que te prende. Morpheu é um Deus atencioso e doce, mas tem muita dificuldade em libertar uma Alma que se lhe venha enroscar nos braços. A escravidão do sono não é amarga, mas o universo é dinâmico e não premeia a preguiça. Dormir, sim, mas apenas em doses homeopáticas para recobrar forças.

Invoca, pois, o Sol, a chama eterna do devir, invoca-o a plenos pulmões da Alma e aguarda a resposta do Cosmos, como se vivesses o momento único do choro primevo.

Invoca esse alfa ardente e fatífero cuja orbe nos consome, em mistério e calor, que nos alimenta, que nos castiga, que nos educa, que nos afaga e nos magoa como um pai cósmico colossal.

Invoca a esfera de hélio, que arderá per seculum seculorum, testemunha descomunal de tudo o que é na pequena bola azul, língua de fogo celestial que banha com saliva quente e vital a existência de cada grão de areia animado.

Invoca essa estrela magna de Alma aberta e mente vácua, e cegarás de luz e eternidade planetária numa fracção de nano segundo, na pira abrasante que tudo depura.

Invoca o astro irrevogável, fatal e infalível no seu poder mortífero, magnífico lar dos gases mais letais, fonte portentosa de vida dos recantos limítrofes do seu pequeno feudo astral.

Invoca a luminária atroz e esplêndida que projecta as suas entranhas em luz e fogo, que vomita as suas vísceras ardentes para fecundar a escuridão, para espantar as sombras cósmicas e abismar os miasmáticos negrumes e as larvas astrais em manifestações de poder total.

Invoca o campanário coruscante, flama maior, ardor puro, abrasador flamívero, corpo incandescente máximo, e Ele te abraçará e consumirá, em fúria chamejante e eónica.

E, no final, se te restar um fragmento de coragem, invoca uma tempestade solar e projecta-te no seu âmago. Entrega-te à obliteração purificante pelo fogo com vulcânica paixão. Extingue-te pela suprema e empírea volúpia na mais resplandecente e cintilante das pequenas mortes.
Desperta!!!

09 agosto 2009

A mais bela das Geishas

Noe Tawara, Jiutamai Dance

A mais bela das geishas dançou para os comuns mortais na passada Sexta-feira em Lisboa. Deixou a indefectível plateia sem ar, sem Alma, sem tempo nem espaço. Enquanto dançou preencheu-nos consigo mesma, com a sua história terrivelmente mórbida e triste, com a sua graciosidade celestial, com a estética levada ao extremo. Deixou-nos ávidos por mais. Passaríamos ali a noite inteira ao vento e ao frio, a vê-la rodopiar, dançar, mover-se. Cada movimento, cada deslocação, cada gesto seu aperfeiçoado ao limite, tão carregados de expressividade que bastou o acompanhamento do shamisen para percebermos todo o argumento. De simplicidade e humildade cativantes, corroeu-nos o espírito, envenenou-nos a Alma como um espectro vindo de uma dimensão paralela, como uma feiticeira real e bela. Mais que bela. Divina! Nem estar por trás da lente me salvou. Entreguei-me ao momento e morri com ela, a vê-la dançar.

06 agosto 2009

A Sombra


Um pequeno fio condutor escorre da imagética dourada. O mais importante torna-se acessório, porque até os cães conseguem uivar como lobos quando realmente entram em contacto com a sua costela mais selvática. Por mais que se tente andar pelos caminhos da consumição eterna, o pequeno fio dourado salva sempre o dia. Não porque seja a sua missão. Talvez apenas porque calha, cosmicamente falando. O dia nasce e morre. E com ele, a noite. As vidas ínfimas, míseros frutos de um milagre maior, deixam-se conduzir por estes nano segundos da grande eternidade, sem saberem da sua desprezível insignificância.
Mas um desafio é sempre um desafio, ainda para mais se for posto na mesa pela própria Divindade. Não se lhe consegue resistir. Por isso, muitas vezes os cães uivam como lobos e os lobos abanam a cauda como cães. As falhas, essas não têm lugar. Rasgam-se as carnes, esfarrapam-se ventos, miram-se luas. As entranhas estão sempre à flor da pele, ainda que pareçam adormecidas ou cadavéricas. Há sempre uma noite em que o brilho das estrelas impressiona a mais bruta das criaturas. Não se viram as costas aos mistérios. Nem mesmo “Aquele-que-tudo-nega” consegue ficar indiferente a um pôr-do-sol no topo do Kilimajaro.
Ainda assim, o fio condutor escorre, pinga, escapa-se. Torna-se naquilo que deve ser, uma bomba relógio à espera de explodir numa imensa nuvem bio-piroclástica que dá origem a novos mundos, cumpre a sua natureza, faz avançar ondas de vida de seres diversos, dá balanço ao universo e corda ao cosmos.
Isso: Dá corda ao cosmos!
E ao faze-lo, projecta-nos à bruta para o trampolim da existência. Como quem pega num crânio e recita Shakespeare do fundo da Alma e de um só fôlego como se do choro primeiro se tratasse. Depois… bom, depois vem a sombra, abarca tudo e entra-se na grande noite cósmica (outra vez!).
[Eram cinco da tarde no relógio de Deus, e certezas ... nada!]

31 julho 2009

Altar vazio


Digam o que disserem um altar vazio dá sempre jeito. Desde os monoteísmos cristão, judaico e islâmico, passando pelo bramanismo, hinduismo, zoroatrismo, (neo-)paganismos vários até ao budismo, confucionismo, taoísmo e jainismo. Dá sempre jeito, não ofende ninguém, não fomenta guerras a montante nem a juzante, para além de ser uma concepção clean, subversiva e nitidamente desviante. A mim agrada-me. Não que não tenha um panteão de hipóteses interessante para fazer passar no teatrinho de um altar sem marionetes. Mas o vazio, o nada, a sua imensidão e infinitude são bem mais inspiradores dado o seu magnetismo natural e a portentosa capacidade de libertação que pode oferecer.

Um altar vazio é um altar de coisa nenhuma (mesmo tratando-se de um altar-mor). Não há culto, não há sacerdote, não há divindade. E precisamente por estar despojado de conteúdos preconcebidos, se investe de renovador interesse. Um altar vazio deixa espaço ao homem para respirar fundo livremente em dimensões menos tangíveis. Pode, ele mesmo se quiser, tomar as vestes do deus velho, barbudo e carrancudo sentado no trono sempre com o dedo preparado para apontar e julgar, pode tomar uma parte de um animal à escolha e juntá-la ao seu corpo e assumir características completamente novas de poder, ou pode tornar-se nada, menos que nada, e fluir livre pelo universo apenas em consciência e mente puras dentro de uma bola de sabão ectoplasmática. Pode ser Messias de si mesmo, ou o mais negro dos avatares. Pode, em boa verdade, não usar o dito altar para nada. Ou como decoração, ideal a dominar o centro de uma sala mais minimalista new-ager.

Um altar vazio representa a verdadeira essência da Epigénese, é o símbolo do conceito de livre arbítrio por excelência com que aparentemente fomos presenteados pelo Grande Arquitecto do Universo. Mergulhar no nada é ousar despojar corpo e mente de amparos, muletas, por vezes até correntes que impedem a imersão no todo, no absoluto, no cósmico e no infinito, no eterno de onde tudo vem e para onde tudo vai… o Vazio.

30 julho 2009

A "Cegonha"


Pôr-do-Sol perfeito, as cigarras raspam as asas, ensurdecedoras, como que tomadas do demo, um concerto de noise em plena natureza, ali, live para nós, a terra emana o seu calor de fim de tarde de Verão, regam-se as árvores de fruto com botas cheias de lama e de Alma lavada e renovada. A água do poço convida a um mergulho. Uma rã salta de uma pedra num mergulho perfeito que faria inveja aos atletas olímpicos. Passa uma cotovia em voo rasante, curiosa. Roi-se uma pêra, olha-se o horizonte. Guarda-se o momento para a posteridade, uma snapshot mental. Sorve-se a eternidade por uma palhinha, a degustar o tempo parado. Uma pequena concessão de Chronos. A areia da ampulheta demora-se e concede-nos um momento mais …

Costura




Costurar algo com requintes de malvadez nem sempre é fácil. É preciso dar muitas voltas à linha, ter tento na língua para a maldição não sair às avessas, e ter cuidado para que nenhum fio de cabelo fique preso à peça. São coisas que levam o seu tempo e que não são para todos os dias. Para além de ter de se aguardar pela Lua certa, é necessário que a Alma esteja no mood adequado, sintonizada na frequência que lhe permita furar protecções, escudos e defesas. É algo que se deve fazer ao sabor do ritmo do universo. Nem sempre as correntes estão a favor. Afinal é uma forma de arte.

16 maio 2009

Escuridão


Quem ousa percorrer os caminhos mais internos de qualquer círculo arrisca-se a encontrar bizarrias desviantes, mistérios, enigmas, oráculos, esfinges que podem levar à loucura labiríntica a mais racional das mentes. São passagens entre os mundos conhecidos, dimensões paralelas (ou não), limbos mentais, extensões existenciais, dilatações da realidade, expansões da consciência.

Há quem apascente aí o espírito, quem beba nessas fontes a inspiração criativa e produtiva, por vezes iluminada, que mata a fome aos indefectíveis sobreviventes de uma era magra em criatividade. Há quem traga dessas estranhas paragens um sentido de vida que faísca nas sinapses nervosas até ao estado de curto-circuito, como centelhas demenciais com um fulgor de mil sois num mundo privado de imparcialidade, em que o ser humano é treinado, educado e instruído para aceitar os padrões de normalidade, a realidade pouco plástica, e a existência simples e comutante.

Dizem os sábios que é necessário estar submergido na escuridão para ver a Luz. Quem percorre caminhos mais luzidios e nítidos andará encadeado?

Dizem os padres exorcistas que quem olha as trevas nos olhos, deixa-se transfixar e leva-as consigo onde quer que vá. Talvez. Farão melhores exorcismos depois do primeiro?

05 maio 2009

O velho diabo


- “Com mil demónios!” disse o velho diabo. “Afinal de quantas colheres de madeira precisas tu, Artesão? Estou a ficar com bolhas nas minhas sacras mãos com a tua chantagenzinha…”
O Artesão suspirou e propôs-se a repetir novamente os pressupostos.
- “Criatura, já te expliquei. Queres que te ajude e te faça uma cruz sólida e digna, tens de me entregar mil colheres de madeira todas diferentes até ao sol-posto. Eu cumpro a minha parte e tu a tua.”
- “Mas por que raio te escolheria o Grande Arquitecto para esta missão? És nitidamente louco. Que têm de tão magnífico as tuas cruzes? Afinal qualquer uma que não vergue com o peso de um homem serve bem o propósito…”
- “Aí é que te enganas, aventesma! As minhas cruzes são feitas de madeira de acácia envelhecida em vinho velho e os entalhes com madeira virgem de laranjeira. Jamais encontrarás outras iguais nem que percorras esta terra mil anos.”
- “Shhhh, não Lhe dês ideias…” Disse o velho diabo encolhendo-se olhando para cima e esfregando as articulações doridas da já demasiado longa permanência na terra. E continuou … “ mas diz-me, para que queres tu o raio das colheres?”
- “ Colheres feitas por um diabo velho?!? São de uma utilidade magnífica. Olha, só os alquimistas da idade média, é uma lista infindável de encomendas, os druidas são outros, completamente maluquinhos por elas, não sabem fazer uma simples poção sem uma. Místicos, químicos, magos, exorcistas. Sabes lá … Não me largam. Tenho vendido bastantes das falsas, isto é, feitas por mim, mas é mau para o negócio. Assim que descobrem que não têm dedo de demónio, vêm cá reclamar, dão-me cabo da oficina, partem-me tudo, enfeitiçam-me a família, eu sei lá… Daí que não possa deixar passar esta oportunidade, entendes?”
- “Mas que porra de mundo este! Tenho saudades dos tempos do jardim do Eden. O Arcanjo Miguel com a sua espada de fogo mandava em todos nós e mais nada. Vocês eram uns bichinhos mansos e ludibriáveis… Se soubesse o que sei hoje, tinha estado mas é quietinho e deixava-vos na ignorância e sem salada de frutas. Mas estava tão aborrecido… “ E suspirou um longo e nostálgico suspiro voltando às colheres trôpegas e rudimentares.
O Artesão encolheu os ombros e continuou a talhar a Cruz. O fim do dia aproximava-se e ele sabia bem a quem se destinava esta. Era hora!

Espelho


Porta.
Entrada.
Saída.
Dimensão.
Passagem.
Futuro.
Acesso.
Mudança.
Ilusão.
Engano.
Aparência.
Adivinhação.
Transformação.
Narcisismo.
Prefiguração.
Aperfeiçoamento.
Correcção.
Imanência.

Templo


Somos Salteadores do Templo Perdido. Porque sim. Porque está na nossa natureza. Porque é uma segunda casa que nos acolhe e que nos resguarda dos ventos. Porque guarda os nossos segredos, principalmente aqueles que não queremos que os aliens que espiam a nossa raça ouçam. Porque somos filhos da noite e adormecemos melhor no seu amplexo. Acrescentamos-lhe cruzes, brindamos às suas paredes, construimos mundos no seu âmago. No Templo Perdido, tudo nos é permitido. Somos os Deuses e os fiéis. Somos as velas e o livro sagrado. Somos os sacerdotes e os cultos, fiéis à pedra sovada pelo vento salgado.

Estrutura Fálica


Por vezes, os encontros com a arte pós-moderna têm destas coisas. Achei muito interessante, daí a homenagem. Que me perdoe o autor pela renomencaltura, mas não consegui resistir.

Teoria do Caos (ou não)




Há acontecimentos que mudam a vida.

Bons, maus, não interessa. São dinâmicos.

Têm a capacidade de transformação.

Geram mudança, novidade, transmutação, metamorfose.

Um pouco como a teoria do bater de asas de uma borboleta.

A partir do instante em que acontecem, em que tomam existência, traçam novos caminhos, novas formas de existir, novos actos, novos passos.

As mais das vezes, o ser nem se dá conta. São as tais membranas de filigrana de prata existenciais. Tão frágeis, tão delicadas, tão intrincadas. Mas tão poderosas.

Cortantes como bisturis de cirurgia.

Cortam na existência como uma lâmina quente em manteiga.

Mudam as formas, refazem, reestruturam.

E para tanto, basta estar vivo. Basta existir.

Vê-se um capítulo da vida encerrar e outro a começar assim… sem quase se ter influência.

Age-se e já está.

Inicia-se um processo que dificilmente se pode parar.

É a roda do Dharma. A Epigénese. A constante dinâmica universal.

Diligente, enérgica, inflexível.

E ao ser, basta-lhe deixar-se ir, boiar à tona do rio da vida.

Nadar contra a corrente só servirá para conhecer a sensação de afogamento.

É um exercício que muita gente pratica.

Nadam constantemente em contra-corrente no rio da vida.

Cansam-se, desesperam, perdem a noção de equílibrio.

Por vezes há que confiar nos seres mais elevados que redigem a cada nano-segundo toda a estrutura cósmica.

Nem que seja assumir que estes são as nossas consciências mais altas, os nossos super-egos, deuses, aqueles em que nos tornaremos se para tanto quisermos seriamente evoluir. Transcendência do estado humano.

Difícil. Sim. Mas possível.

Como diz o Outro "Todos somos Deuses em potência!"

O triste da questão é que ninguém quer acordar.

Ninguém se quer transcender.

Toda a gente prefere estar preso na roda, como um hamster.

E assim passam as vidas a correr de um lado para o outro, convencidos que estão a fazer algo pelo simples facto de correr.

Mas correm como um ratinho numa gaiola, na sua roda eterna, sem sair do lugar.

Há que roer as barras de metal da prisão e descobrir o Mundo.

Crescer, evoluir, escalar. Custa. Dói. Martiriza.

O sofá é bem mais confortável. Seguro. Fôfo. Estático.

Imagino o desespero de um Buda, de um Lúcifer, de um Zoroastro, de um Cristo.

Que frustração.

Descobrir um caminho de ascese directa, querer partilhá-lo com toda a humanidade com entusiasmo "É por aqui!!" e ninguém querer saber, toda a gente olhar para o lado e acabar por se afastar.

Por vezes, quando sou mais compreensiva até acredito que tenha de ser assim.

Acredito que tenha de levar o seu tempo e que a humanidade não está pronta para dar o salto quântico na escala da evolução.

Mas quantos mais eóns terão de passar?

Quanto tempo mais precisará?

Assombra-me a capacidade de conformismo, de preguiça e de auto-comiseração que o género humano consegue atingir.

Desde o sem-abrigo ao alto executivo. Um dorme na rua, outro conduz um BM série 7.

Ambos dormentes, ambos perdidos, ambos falhados como seres da Criação.

Não vivem. Não sobrevivem. Apenas sub-vivem.

De quanto mais tempo, desespero, comutação precisarão para baterem no fundo do poço com os pés com toda a força e sentirem a desesperada e voraz necessidade de respirar, de superfície de além-poço??

Quantos mais quilos de lodo terão de engolir?

Quanto mais abandono terão de sacrificar?

A ascese é limpa, é uma escada poderosa, que nos puxa para cima a cada passo com mais força.

É viciante, bela, segura. Árdua talvez.

Mas recompensadora.

É a única cura verdadeira para as dores da existência.

É uma escada cujo fim é o reencontro celestial com quem realmente somos, com o ser a quem foi soprado o Logos, a centelha de fogo da vida no início dos tempos.

Aí, abandonam-se as vestes de barro e assumem-se as de fogo e éter.

Passa a fazer-se parte de uma anarquia divina com que se saboreia a amplitude máxima de uma consciência absoluta, íntegra, perfeita, pura.

Para começar basta apenas abrir os olhos (para muitos pela primeira vez) e começar a caminhar.

Sair dos trilhos comutantes.

Pensar por si próprio e não aceitar nada que não provenha da auto-conclusão.

Esta é a primeira pedra.

Benzedura


"Ora é Lua!"

Pegando na faca de lâmina virgem, vertendo um pouco do primeiro azeite do ano na taça, dispondo alhos novos ainda com rama, cabelos soltos, pés descalços, vestido de linho tosco, comprido a roçar o chão. Sal, velas, água da fonte, carvão incandescente, ramo de alecrim e rosmanhinho a queimar.
Invoca-se a descida d'Aquela-Que e diz-se a meia voz em mantra mode:

"Aqui te corto
se és cobra ou cobrão
sapo ou sapão
aranha, aranhão
bicho de toda a nação
corto o rabo, a cabeça e a raíz do coração!
Tudo venha a bem amor
pelas cinco chagas místicas de nosso Senhor!"

A Faca rasga o Azeite em forma de cruz, corta a rama e o coração dos Alhos, Sal ao Fogo a crepitar, Água ao Fogo para acabar. Enterram-se os restos para a Mãe Natureza galvanizar.

"Dito foi, feito está!"

ADA! QASE, QASS e QASEDN!

E pronto.. EVOE!
Nota - Não efectuar em noites de lobisomem, anos bisextos ou sem o cuidado atento de alguém experiente ao lado, por perigo de transmutação em sapo e de dez anos de hirsutismo para toda a família.

Inconsciente ao Sabor da Pena


Por vezes parece-me que a realidade se desfragmenta. Regressa de novo o conceito de moscas temporais. De portais ciclópicos. De eterno retorno. De teias cósmicas feitas de pontos de luz unidos entre si. De membranas de filigrana de prata. De crepúsculos à beira Ganges. De realidades paralelas que se cruzam num momento de fusão eónico. Do sabor a eternidade. E a realidade desfragmenta-se porque sei que nada disto é ilusório. É tão real como a respiração, como o bombear do órgão do sangue, como a fome e a sede. Essa desfragmentação nunca se afigura caótica, pelo menos ao meu ser, uma vez que, se a considero real, convive em pacifismo e equidade com a realidade-padrão preponderante. E assim, os ciclos mágicos existenciais sucedem-se. São apenas um registo diatónico e por vezes até colorido de metafísica. Para além das fronteiras instituídas há sempre espaço para mais, existe sempre possibilidade de arrumação, de consagração, até de exaltação se for caso disso. Há também tempestades temporais, milenares que adjuvam a transformação, a evolução. Mas isso são falhas próprias de um sistema que ainda se encontra em fase de aperfeiçoamento. Sem falhas ou erros não há aprendizagem anímica. Daí que seja necessária toda a atenção, quase carinho pelo erro e consequente tempestade para tornar segura uma ascése plena e sólida, diria mesmo (multi)metacárpica, uma vez que se trata tão somente de escalar montanhas, A montanha pessoal, o também chamado Caminho. A cosmogonia existencial é tão palpável como passar a mão pelo cabelo. A densidade da observação e atenção humana é que pode ser de pouca profundidade e alguma distracção. O atlas da Alma humana existe. Está escrito a ferro e fogo numa égregora própria a que os sábios antigos chamam os Arquivos Akáshicos, ainda que infinitos, inacabados e labirínticos. Existem. São tão reais como a biblioteca de Alexandria o foi um dia. As confluências cósmicas, inter-galácticas são marcas profundas no Universo. Visíveis, mensuráveis, de cálculo um pouco colossal para a escala humana, mas alcançável por uma mente superior, uma mente da qual fazemos parte integrante. Uma mente que poderemos Ser um dia.

03 maio 2009

Tempus Fugit ou a Aranha Escondida


Sempre que, ao longo da existência, me foi dito ou me ocorreu que o tempo urge fico com um sabor amargo e cruel na boca da mente, uma espécie de consciência de que o tempo está a passar inexoravelmente, subtil, subliminar, neste preciso momento, milissegundo após milissegundo, minutos, horas, dias, meses, anos e não há nada que possa fazer quanto a este facto. Como se esta constatação não fosse, em si mesma, terrível e não bastasse já para atormentar o espírito, ainda se pode analisar o que realmente está a ser feito com esse tempo. Porque uma vez que o futuro vem, passa a presente e o presente passa, torna-se passado. :) Mind-bugging as hell! Por vezes escapam-se pensamentos do inconsciente que vêm ao de cima como bolha de ar subaquática. São as tais membranas de filigrana de prata com que me familiarizei há muitos anos, desde cedo, desde os primeiros passos de consciência. São como pontos de luz que estão de alguma forma unidos e que representam um cosmos muito particular, um universo intimista, tempestuoso, criativo, dinâmico e viril que faz parte do sotão gigantesco que é a minha mente [a mákina]. Algures, há também um jardim zen em cujo centro costruí um Dojo, pelas minhas próprias mãos. É aí que ultimamente tenho passado mais tempo. É quase sempre entardecer de um dia de verão ameno. Tem algumas árvores por perto e a brisa faz ondular os ramos e as folhagens como se dançassem. Por vezes também chove e faz trovoada. É bom treinar artes marciais sob a fúria dos elementos. Deixo-me ficar nesse canto a absorver o bater do coração da Terra e do Universo, em estado de consciência mínimo. É uma espécie de zazen autodidacta, sem tempo nem espaço. Aí, santa paciência para Chronos, tempus non fugit. Aí, degusto a eternidade ao sabor da minha ampulheta, protegida na minha bola de sabão cósmica, tendo apenas por companheira a Aranha Escondida, minha Mestra, que muito de vez em quando vem cá fora para me deixar parábolas em que pensar.

A Cama Voadora


Desde que Van Gohg cortou a orelha, a arte mudou!
Abriu-se uma porta imensa, larga, através da qual tudo pode entrar e sair, tudo é permitido.
Tal como aconteceu com o mundo da moda depois de John Galliano assassinar e rasgar, em excentricidade pura, a casualidade e formalismo da capital da moda nos anos noventa.
E ainda bem! Nunca suportei o Cubismo e muito menos os tailleurs da Dior.

Sorte ou Merecimento?


E assim, do nada, fotografava eu uma simples e desencantada flôr, quando sou presenteada com uma abelha perfeita, carregadinha de pólen nas patas de trás, atarefada na sua vida, a lixar-se bem para mim e para a minha máquina, quase a dizer: "Chega-te para lá pá, que eu estou a trabalhar!" e se enfia na dita flôr e me deixa fotografá-la nos seus sagrados afazeres. :)

Insecto Cisne


Os insectos são bichos vaidosos, narcísicos, falsamente modestos. Sempre a posar para o humano mais próximo com plena consciência de quão belos e perfeitos são. E eu aproveito.

21 abril 2009

"What lies beyond doesn't worry me."


Lógica, Oratória, Metafísca, Ontologia, Epistemologia, Ética, Estética, Fenomenologia, Escolástica, Humanismo, Idealismo, Materialismo, Existencialismo, Pragmatismo, Iluminismo, Racionalismo, Helenismo, Cepticismo, Cinismo, Estoicismo, Solipsismo, Orientalismo, Epicurismo, Heliocentrismo, Positivismo, Onirismo... Pois sim... Tanta corrente filosófica para estudar e uma vida tão curta. A frustração, nestes casos, apresenta-se cruel, corrosiva e implacável às minhas células nervosas. As orbes celestes vivem éons infindos. A vida humana tem a duração de um fósforo cósmico. Acende, queima e morre. Mais rápido que o ciclo respiratório do mais diminuto dos planetas. Não me molestam os mistérios. Não me incomoda o devir. Não me fere o pós-vida. Mas entrar no raio de uma biblioteca ou livraria qualquer que seja e tomar consciência que nunca vou apreender sequer um centésimo do seu conteúdo mortifica-me. Tanto, que evito cada vez mais tais visitas. Custa-me engolir a efemeridade da duração da vida humana. Mesmo ponderando as teorias reencarnacionistas. Custa-me. Nem com sais de fruto para a mente consigo um boa digestão para este facto. Compreendo, pois, em analogia metafórica, a revolta do Roy no grandioso Blade Runner. A famosa cena da lágrima. Sinto-me cúmplice e subscrevo a sua raiva. Já ouvi falar muito nos Akáshikos, esperança última. "Last exit for the lost." Mas estão tão longe como Cassiopeia, raios! E eu não pago o preço com facilidade ou de ânimo leve. Ou, neste caso concreto, de anima leve. Dado o tema, não resisti ao trocadilho. Posso perder a esperança, mas nunca o humor.

Lord Buddha


Heil, Avatar dos Avatares!

A geisha que há em mim

hoje está algo eriçada.
Apetecia-lhe que a noite que se aproxima não tivesse fim.
Apetecia-lhe uma daquelas famosas noites de Verão indiano, quentes, infindas, saborosas ... Apetecia-lhe que o rouxinól cantasse toda a noite no beiral da janela.
Apetecia-lhe rasgar o kimono e despentear o toucado selvaticamente, depois de ter passado horas a preparar-se.
Rebelar-se contra o Samurai, para depois matar a rebelde e renascer submissa.
Está eriçada porque sim.
Olhou-se ao espelho, maquilhou-se, vestiu-se e sorriu.
E sorriu mais ainda, eriçada consigo mesma.
Sorriu como Narciso.
Sorriu para o reflexo em conivência pela noite que se avizinha.

And then appeared the Fox

(…)

"Good morning" said the fox.
"Good morning" the little prince responded politely, although when he turned around he saw nothing.
"I am right here" the voice said, "under the apple tree."
"Who are you?" asked the little prince, and added, "You are very pretty to look at."
"I am a fox," the fox said.
"Come and play with me," proposed the little prince, "I am so unhappy."
"I cannot play with you," the fox said, "I am not tamed."
"Ah please excuse me," said the little prince. But after some thought, he added: "What does that mean - 'tame'?"
"You do not live here." said the fox
"What is it you are looking for?"
"I am looking for men," said the little prince.
"What does that mean - tame?"
"Men,"said the fox, "they have guns, and they hunt. It is very disturbing. They also raise chickens. It is the only interesting thing about them. Are you looking for chickens?"
"No," said the little prince. "I am looking for friends. What does that mean - tame?"
"It is an act too often neglected," said the fox. "It means to establish ties."
"To establish ties?"
"Just that," said the fox.
"To me, you are still nothing more than a little boy who is just like a hundred thousand other little boys. And I have no need of you. And you, on your part, have no need of me. To you I am nothing more than a fox like a hundred thousand of other foxes. But if you tame me, then we shall need each other. To me, you will be unique in all the world.”
(…)

Norte Magnético

esse grande escultor.

07 abril 2009

Feira da Ladra


Perguntámos o preço dos potes japoneses, que o velhote dono da banca se apressou a esclarecer em tom de entendido serem garrafões de sake do Sec. XVIII (!) e que custavam nada mais nada menos que 200 € o mais pequeno e 300€ o maior (!!). Agradecemos, intimidados, e preparávamo-nos para seguir caminho, quando o velho, de olho a brilhar ao ver a minha máquina fotográfica diz: "Mas pode fotografar à vontade, se quiser!" ao que respondo com um agradecimento e a afirmação de que tem uma banca muito bonita. Orgulhoso e ufano ri-se e apressa-se a encenar a pose casual supra, mais profissional que muitos modelos que para aí andam.